Uma Noite em 1967: o Festival que deu um upgrade na MPB
Era a noite do dia 21 de outubro, com direção de Solano Ribeiro e apresentação de Blota Jr., Sônia Ribeiro, e reportagens de palco e bastidores com Cidinha Campos e Randal Juliano, telespectadores aguardavam com muita expectativa. Roberto, Caetano, Gil, Edu Lobo e Chico Buarque estavam ansiosos pelo resultado do belíssimo Festival que deu um “upgrade” na história da MPB. Poucas vezes, um público assistiu no mesmo palco artistas com letras tão refinadas e arranjos que ousavam escrever um novo capítulo de nossa música. O evento atingiu um índice de 55% da audiência, com 97 pontos no IBOPE.
Nos bastidores, os organizadores, com toda a direção da Record estavam tentando manter a tranquilidade, e não era para menos. Essa edição contava com quatro canções cotadíssimas para levar o prêmio maior, a disputa estava acirradíssima.
O público mostrava-se co-protagonista do evento, apoiando com fervor e dedicação sua canção preferida. Quando uma música não agradava, vaias ensurdecedoras eram ouvidas à distância, inviabilizando, até mesmo, a apresentação de algum concorrente ao prêmio, fato que se deu com Sérgio Ricardo. Ele recebeu tantas vaias que acabou perdendo a cabeça, quebrou o violão no palco e jogou o que sobrou à plateia.
Os Festivais da Record eram festas musicais, protagonizadas por garotos de pouco mais de 20 anos. As atuais lendas da MPB estavam em início de carreira. Eram noites de batalhas: no palco e bastidores. No palco, a disputa entre Alegria, Alegria; Roda Viva; Domingo no Parque; Ponteio e a apagada Maria, Carnaval e Cinzas, defendida por Roberto Carlos, a única a não entrar para a história da MPB como uma canção de sucesso.
O período coincidiu com outra batalha: a do violão contra a guitarra elétrica, entre a MPB tradicional – influenciada pelos defensores da Bossa Nova -, e do outro lado, os jovens deslocados que se inspiravam no rock’n roll estrangeiro, além dos participantes da noviça Tropicália. E ao final daqueles anos 1960 o maior desejo da direção do programa era de que tudo desse certo e que o evento fosse grandioso aos telespectadores. Um dos picos da batalha contra a guitarra elétrica se deu em 17 de julho de 1967, na Marcha Contra a Guitarra Elétrica, em São Paulo, e que contou com a liderança de Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e MPB-4. Gil participou, mas disse que foi só para agradar a Elis, Caetano que tinha outros planos para a guitarra elétrica, observou à distância.
Uma vez que o país estava em um período de regime militar, tal marcha pareceu tão absurda que houve quem sugerisse que tudo não teria passado de uma armação da TV Record para promover o programa O Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Outra preocupação dos organizadores do Festival foi administrar crises, tendo em vista que era um programa ao vivo, a presença de todos músicos participantes no palco para defenderem suas canções era sempre um mistério, uma tensão. O organizador Solano Ribeiro relatou casos como buscar artista que bebia no botequim em cima da hora da apresentação. Gilberto Gil teve uma crise de pânico e ficou no hotel, havia desistido de cantar. Paulo Machado de Carvalho Jr., filho do fundador da Record e diretor dos festivais da casa, relatou que foi buscar Gil e ajudou a namorada dele à época, Nana Caymmi, a dar banho nele e vesti-lo.
Os números do Festival dos festivais
Segundo Zuza Homem de Mello (músico, técnico de som, jornalista e escritor), autor de A Era dos Festivais: “Mais de 4 mil músicas foram recebidas para a disputa de 25 milhões de cruzeiros e do troféu Viola de Ouro para o primeiro colocado, 10 milhões para o segundo, 7 milhões para o terceiro, 5 milhões para o quarto e 3 milhões para o quinto. O melhor intérprete receberia a Viola de Prata. ” (MELLO, 2003, p. 184). Em cada eliminatória foram apresentadas 12 canções entre as quais se classificavam 04 em cada fase, compondo uma final também com 12 canções. José Eduardo Homem de Mello, mais conhecido como Zuza Homem de Mello, nasceu no dia 20 de setembro de 1933. Jornalista, ele se especializou na história da música popular brasileira (MPB). Morreu aos 87 anos em 04 de outubro de 2020.
Colocação das quatro primeiras canções
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Em quarto lugar ficou Alegria, Alegria (Caetano Veloso), defendida por Caetano Veloso e o grupo argentino de rock Beat Boys. Com esta canção, Caetano (e Gil), inaugurava o chamado “som universal”, culminando no movimento tropicalista, que explodiria no ano seguinte através do emblemático disco Tropicália ou Panis et Circensis (1968), inspirado no lendário álbum dos Beatles, Sgt. Peppers’s Lonely Hearts Club Band (1967). A marcha-pop de Caetano (que se apresentou com blazer xadrez e camisa de gola rolê laranja) começaria sendo vaiada pelo público mais ortodoxo, que rejeitava a novidade da guitarra elétrica, mas terminou sendo aplaudida e abrindo novos caminhos para a insurgente MPB, possibilitando fusões sonoras e universalismos, então refutados pelos mais tradicionalistas. A letra de “poesia câmera-na-mão”, juntava influências do Cinema Novo de Glauber Rocha e do antropofagismo oswaldiano, com referências a presidentes, fuzil, bandeiras, mas também a Claudia Cardinale, Brigite Bardot, a televisão e a Coca-Cola, considerada símbolo do imperialismo pelos esquerdistas.
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O samba Roda Viva (Chico Buarque de Holanda), defendido por Chico Buarque de Hollanda e MPB-4, ficou com o terceiro lugar. Roda Vida, de tom crítico, percebido em versos como “A gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar/ Mas eis que chega a roda viva/ E carrega o destino pra lá”, também foi tema da peça homônima escrita por Chico Buarque no final de 1967, com estreia no início de 1968, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.
Considerada pela revista Rolling Stone Brasil como uma das maiores músicas brasileiras de todos os tempos, Roda Viva foi lançada no final de 1967 no álbum Chico Buarque de Hollanda – Volume 3.
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Com o segundo lugar, ficou Domingo no Parque (Gilberto Gil), defendida por Gilberto Gil (que horas antes de sua apresentação tremia e ardia em febre na cama, sendo resgatado por Paulo Machado de Carvalho, que o levou para o teatro) e Os Mutantes, uma canção moderna, misturando berimbau e guitarra elétrica, os inovadores arranjos de Rogério Duprat e a cantiga de capoeira, o bucolismo da ribeira e uma letra cinematográfica, narrando quadro a quadro os enlaces ente Juliana, José e João. Juntamente com Alegria, Alegria, de Caetano, Domingo no Parque, inaugurava o chamado “som universal”, formando também as bases do Tropicalismo.
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Mas, em primeiríssimo lugar, ficou a vibrante Ponteio (Edu Lobo/ José Carlos Capinan), defendida por Edu Lobo, Marília Medalha, Quarteto Novo e Conjunto Momento Quatro. Canção com ares sertanejos, recorrendo a violões, a emblemática flauta de Hermeto Pascoal e uma marcação de xaxado, trazendo muito da musicalidade nordestina e fazendo referência ao modo dos violeiros de todo o Brasil tocarem a viola, o ponteio, ato este reforçado pelo refrão cantado em uníssono: “Quem me dera agora eu tivesse uma viola pra cantar/ Ponteio”. A letra de Capinan também estava bem ao gosto da juventude politizada frequentadora dos festivais e ainda havia um carisma em Edu Lobo e uma imponência em Marília Medalha que certamente cativaram o público. Todos estes fatores levaram Ponteio a ganhar a Viola de Ouro e sair vencedora deste que foi considerado o “Festival dos Festivais”.
Um Festival de importância histórica
Outras canções que se destacaram foram O Cantador (Dori Caymmi/ Nelson Motta), defendida por Elis Regina, que ganhou o prêmio de melhor intérprete; a quilométrica sertaneja A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller), defendida por Nara Leão e Sidney Miller, que ganhou o prêmio de melhor letra; o frevo Gabriela (Francisco Maranhão), defendido pelo grupo MPB-4; o samba-canção Eu e a Brisa (Johnny Alf) , defendido por Márcia, que embora não tenha conseguido grande êxito no festival, viria a se tornar um dos grandes clássicos da música brasileira
Solano Ribeiro, o produtor, definiu assim o Festival: “nada mais era do que um programa de televisão. Só depois é que aquilo ganhou importância histórica, política, sociológica, musical, transcendental”. No ano seguinte ao Festival da Canção de 1967, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e outros artistas lançaram o álbum que deu origem à Tropicália.
Fontes: Mello, Zuza de Homem. A Era dos Festivais; Uma Noite em 67 (Renato, Terra, Calil); Veja, o documentário Uma Noite em 67; Arquivo TV Record.